Outro dia, atendi uma paciente que, em meio a um luto gestacional recente, me disse com lágrimas nos olhos: “A gente fez tudo certo. Esperamos o melhor momento, escolhemos o obstetra com cuidado, tomamos ácido fólico antes… não era pra dar errado.” Aquela fala ficou comigo. Ela trouxe à tona uma reflexão que já vinha me acompanhando como mulher, cristã e psiquiatra: será que a forma como passamos a conceber a chegada dos filhos — como um projeto — está mudando a maneira como lidamos com a experiência da parentalidade?
Nossas avós e bisavós geralmente não escolhiam o momento de ter filhos. A gravidez vinha, às vezes em sequência, e era acolhida como uma graça divina, algo fora do controle humano. Havia lutos, perdas e desafios — é claro. Mas o sofrimento por vezes vinha diluído em um contexto em que pouco se esperava controlar e muito se atribuía a uma força maior. Hoje, em contrapartida, temos métodos contraceptivos eficazes, fertilização in vitro, exames genéticos, aplicativos que preveem ovulação com precisão. E, com esses recursos, surge também uma ilusão de controle.
Vivemos tempos em que os filhos são sonhados, planejados, “encaixados” na carreira, na estabilidade financeira, no momento ideal do casal. Às vezes se projeta não só o número de filhos, mas o sexo deles, os nomes, os valores que queremos que carreguem, os esportes que queremos que pratiquem. Os filhos são projetados e encaixados tal qual uma pós graduação ou mestrado. E, como toda idealização, isso tem um custo emocional alto quando a realidade não corresponde ao esperado.
Tenho observado, com frequência crescente, como perdas gestacionais hoje são vividas de forma profundamente traumática, e é claro que são dolorosas mesmo. Mas não é à toa: quando tudo foi minuciosamente planejado, a perda não é só física, mas também simbólica — é a perda de um projeto de vida cuidadosamente desenhado. Em casos de filhos que nascem com condições inesperadas de saúde ou de desenvolvimento, também noto maior incidência de sintomas depressivos e quadros de exaustão parental, especialmente quando o ideal de perfeição foi cultivado durante toda a gestação.
O que me preocupa é que essa lógica do planejamento total tem gerado uma sensação de fracasso individual quando algo escapa ao “script”. Como se o imprevisto fosse resultado de uma falha pessoal — como se a perda gestacional, a dificuldade de amamentar, o bebê que não dorme ou o filho que não aprende como o da vizinha fossem sinais de que a mãe ou o pai “não se planejaram o suficiente”. A culpa, nesses casos, pode ser devastadora.
Outro ponto importante é o impacto da idealização nos vínculos parentais. Quando o filho existe primeiro como ideal, pode haver dificuldade em aceitar sua singularidade, suas diferenças, suas limitações. O filho real — com suas necessidades, sua imprevisibilidade e sua autonomia — pode ser recebido com estranhamento ou até rejeição. E isso não significa que os pais sejam menos amorosos, mas que talvez tenham sido seduzidos pela ideia de que amor e controle andam juntos, quando na verdade muitas vezes eles se opõem.
A ciência começa a trazer dados que corroboram essas percepções clínicas. Estudos sugerem que pais e mães com expectativas muito rígidas sobre a parentalidade têm mais risco de desenvolver sintomas depressivos ou ansiosos quando enfrentam frustrações — e que esse risco é maior entre mulheres que vivenciaram dificuldades reprodutivas e criaram uma imagem idealizada da maternidade como forma de compensação emocional.
O cuidado perinatal precisa, então, incluir espaço para luto, para revisão de expectativas, para acolher o que escapa ao script. Como psiquiatra, é minha tarefa — e a de muitos profissionais que atuam nesse campo — ajudar mães e pais a fazerem essa travessia: do ideal ao real, do controle ao acolhimento, do projeto ao encontro com o outro que é o filho, com sua própria subjetividade.
Talvez nunca tenhamos desejado tanto ser bons pais e mães. Mas talvez também nunca tenhamos nos cobrado tanto por não sermos perfeitos. A boa notícia é que, mesmo num mundo que insiste em vender performance e controle, há espaço para vínculos mais humanos, mais possíveis, e mais verdadeiros.